Motociclismo: entre a mobilidade, liberdade e o preconceito
Reportagem do DM mostra a subcultura das motocicletas, com rituais, dificuldades e hierarquias da luta por espaço nas estradas
Texto por Jackeline Osório e Welliton Carlos
Cirurgião Zacharias Calil: uso de moto para salvar vidas (Foto: Edilson Pelikano)
No domingo, 23, um grupo de potentes máquinas guiadas por homens de carne e osso realizaram o “Motociclismo Social”. A concentração saiu do Buriti Shopping, às 8h30, em direção à Aparecida de Goiânia.
Doações foram entregues no Lar Irmã Dulce. As motos que engolem asfalto também levaram mantimentos e iluminaram os olhos vidrados dos anfitriões.
Os moradores do Lar Irmã Dulce, por sua vez, tiveram a chance de ignorar índices condenatórios e visões mitológicas de que o motociclista é o ladrão de capacete, o drogado pé de chinelo e o pobre que ascendeu na vida comprando uma motoneta em 60 prestações.
“É bom ver como a ‘meninada’ e as pessoas do lugar ficam felizes com a presença dos motociclistas”, diz Wellington Format, um dos motociclistas que demonstra como a moto leva cidadania na garupa, longe dos estereótipos das crônicas urbanas que ignoram a cultura dos motoboys, a modernização dos motovaqueiros e a coragem dos policiais que rasgam ruas em confronto com criminosos.
Se dependesse da hierarquia do trânsito, era para elas não existirem. Motos, entretanto, imperam em meio aos caminhões, carros, jipes e ônibus. Ao lado das bikes, formam o grupo das minorias, mas ativas, com grande mobilidade, heroicas e sustentáveis.
Em que pese à visão das autoridades sobre acidentes (de que a culpa é sempre dos motociclistas), das concessionárias de ônibus (que detestam a moto, pois perdem consumidores) e da indústria das multas (que não consegue enquadrar motociclistas), as duas rodas seguem velozes, ora rumo ao desespero da urgência ora aos braços da liberdade.
Essa criatura de aço cromado, garfos brilhantes e guidões longos já levou o médico cirurgião pediatra Zacharias Calil várias vezes para salvar vidas.
A responsabilidade de Calil o faz considerar sua moto Harley Davidson mais do que mero hobby. “Ela me leva para a sala de cirurgia. Sem a moto nem sei o que aconteceria com muitos pacientes”, diz o médico, que costuma também usar o veículo para visitar doentes nos finais de semana.
Calil reclama da visão quase doentia que muitos têm das motocicletas. “Há duas semanas, um rapaz de carro chegou e passou em cima do meu pé. Mas ele estava literalmente transtornado, com ódio”, recorda indignado, revoltado, porque lutava por seu espaço, uma questão de centímetros.
Motolância
Como Calil, muitas vezes ignorados, mas seguros e firmes, foram os socorristas André Alves e Diego Ribeiro, que chegaram em poucos minutos para tentar salvar duas crianças que se afogaram numa creche na região de Serrinha, no começo de julho. A imprensa se esqueceu deles.
Pilotos da motolância, eles salvaram os dois com vida. “A moto é mais ágil. Chega primeiro, uns cinco minutos antes”, diz Wesley Ribeiro, da equipe que atua no Samu.
Essa moto que é mais ágil, e que apresenta maior mobilidade, também exige destreza. exatamente este segredo de difícil percepção, que é garantir o equilíbrio e agilidade.
A moto, que salva vidas e leva mantimentos, e serve para incrementar a economia, exige nova postura daqueles que se habilitam.
Hoje, com toda certeza, esse veículo de física leve necessita de uma espécie diferente de condutores: mais educados e responsáveis. “Muitos motociclistas tiram a carteira, mas não sabem pilotar”, diz Marcus Mendes de Souza, o Doidera, um dos principais instrutores de Goiás.
Também faltam novas políticas públicas. Conforme Alexandre Moura, engenheiro de trânsito e professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), um dos principais problemas da moto, em uma cidade como Goiânia, é a ausência de fiscalização. “E tecnologia também”. Alexandre sugere poucas mudanças, mas consistentes, como a automação dos semáforos e controle de tráfego. E, conforme Antunes da Costa, estatístico, é necessário fazer uma análise mais científica e menos apressada dos números coletados do sangue que jorra do asfalto. “Não é feita uma leitura qualitativa. A moto é sempre a culpada, o que se revela erro de julgamento”, aponta.
O problema das motos, se é que existe, portanto, é de todos. A reportagem do DM foi até os Estados Unidos da América, o país que desenvolveu a moderna moto, e encontrou dados exatamente iguais aos do Brasil, o que desmitifica que o aumento do uso das motocicletas seja uma questão de preço e suburbanização do uso do transporte.
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